Quando a ordem é injusta, a desordem é já um princípio de justiça.

07 janeiro, 2006

A Caixa Prateada - Histórias de uma cidade

Havia naquela cidade dois cidadãos. O cidadão curioso era um fanfarrão, um homem alegre e divertido. O outro, o cidadão discreto, era um homem de parcas palavras, bom e educado. O cidadão discreto fazia-se sempre acompanhar por uma caixa prateada, metálica, de forma cúbica. Jamais se separava dela. Ao cidadão curioso perseguia o desejo de conhecer o conteúdo de tão enigmática caixa. Certo dia, passava o homem curioso pela casa do discreto quando se deteve junto de uma das janelas. O homem discreto possuía uma bela mansão e bens e já ocorrera ao curioso que tudo se devia ao conteúdo da caixa prateada. Mirou dentro da casa e observou o cidadão discreto com a mão presa no interior da caixa. Olhou a sua expressão. Era um misto de dor e prazer. Um extase o qual nunca tinha visto, nem nas salas dos fumadores de ópio, nem nos bordéis que tanto frequentava. Naquele momento o homem desejou o interior daquela caixa e invejou o cidadão discreto. Ignorando o bom senso que vivamente o desaconselhava, o fanfarrão, uma noite, invadiu a privacidade do homem discreto. Durante a intrusão apropriou-se da caixa prateada. Correu loucamente até um lugar onde a escuridão era total. O seu coração palpitava de excitação. A adrenalina fervia nas veias. Procurou uma abertura na caixa mas sem sucesso. Fez esforços para descobrir o segredo daquele cofre, em vão. Na altura sentiu medo. Mas a vontade de conhecer o mistério que aquele cubo encerrava consumia-o por dentro.
As portas da serralharia ofereceram pouca resistência ao ombro do cavalheiro curioso. Serviu-se dos instrumentos para forçar o objecto. Já era manhã quando finalmente venceu. Um dos lados cedeu e enrolou-se como se fosse a tampa de uma embalagem de atum enlatado. O homem surprendeu-se com a pouca espessura da folha metálica de que era feita tão resistente caixa.
Assim que a abertura se tornou suficientemente larga saltou de dentro da caixa um verme, um animal que não conseguiu identificar. Não figurava semelhante criatura nos livros de zoologia, nem tão pouco nos de paleontologia e ainda menos nos de mitologia. Num ápice a criatura atacou o cidadão curioso. O parasita ferrou o homem e foram inuteis os esforços que este fez para se libertar. A dor era insuportável. O homem começou a ficar muito infeliz, invadido de uma tristeza medonha. De repente todas as boas memórias se evadiram do seu pensamento. O homem ficou ali, sem reacção ao mesmo tempo que a criatura se alimentava das suas memórias de felicidade. O homem definhava, o sentimento de tristeza aniquiliva-o lentamente. Antes de desfalecer um último pensamento lhe ocorreu. Amaldiçoou o dia em que ousou invadir a privacidade alheia e jurou não voltar a fazê-lo. Estava de tal forma determinado a não o fazer que entregou a vida naquele momento. Aquele pérfido animal ficou livre e continuou a espalhar a infelicidade na cidade. Sacrificaram-se virgens, usou-se a mais avançada das tecnologias, chamaram-se sacerdotes de todas as religiões mas nunca mais ninguém conseguiu encarcerar a besta. O homem discreto foi preso, as casas invadidas, as vidas devassadas para que outras especimens fossem eliminados. Naquele dia abriram-se as portas naquela cidade ao ódio, à mesquinhez, à inveja, à maldade. Todos os monstros que os cidadãos alimentavam na sua privacidade sairam para a rua e nada seria, nunca mais, como no passado.

1 comentário:

Anónimo disse...

Qta coincidência essa estória com a vida real.